“A gente percebe quando chega o cigarro do Paraguai na cidade porque a nossa venda cai”. A declaração de uma comerciante de Venâncio Aires traduz a realidade do contrabando de cigarros que não poupa nem mesmo o segundo município maior produtor de tabaco do país. Um dos berços da matéria-prima do cigarro faz parte das estatísticas que apontam que 57% de todos os cigarros consumidos no país em 2019 foram ilegais, sendo que 49% contrabandeados (principalmente do Paraguai) e 8% produzidos por fabricantes nacionais que operam de forma irregular.
Há 20 anos no mercado legal de cigarros, a empresária afirma que as marcas mais baratas são as mais afetadas. “As marcas mais baratas são as que param de sair. Em média vendemos cinco pacotes de cada marca destas por semana, mas quando param de vender já sabemos que o cigarro ilegal chegou na cidade”, afirma a empresária cuja identidade está preservada a pedido de forma preventiva a possíveis retaliações.
A realidade de cidade de interior, com cerca de 70 mil habitantes, é um recorte do que ocorre repetidamente Brasil afora, onde a diferença de preço das marcas mais acessíveis ao consumidor tem sido o ponto chave de exploração do mercado ilícito. Segundo o Ibope, o cigarro ilegal no estado passou de R$ 3,22 para R$ 3,38 enquanto o preço mínimo estabelecido pelo governo para o cigarro legal no Brasil é de R$ 5,00.
Para o presidente do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), Edson Vismona, os dados mostram como o fator financeiro impacta no crescimento do contrabando. “É fundamental reduzir a principal vantagem dos contrabandistas nessa guerra contra o contrabando: a diferença de preços entre os cigarros legais e aqueles trazidos ilegalmente do Paraguai ou fabricados ilegalmente no Brasil”, afirma Vismona.
A PASSOS LARGOS
O crescimento no mercado ilegal de cigarros, apurado pelo Ibope, ocorre há seis anos ininterruptos e se alastra pelas cidades brasileiras chegando ao total de 63,4 bilhões de cigarros ilegais no ano passado. O número representa um crescimento de 3 pontos percentuais em relação à pesquisa de 2018.
Com isso, a arrecadação de impostos do setor será inferior à sonegação causada pela ilegalidade: R$ 11,8 bilhões contra R$ 12,2 bilhões. Esse valor, se revertido em benefícios para a população, poderia ser usado para a construção de 5,9 mil Unidades de Pronto Atendimento (UPA), 21 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS) ou 8,6 mil creches.
UNIÃO DE ESFORÇOS
Alvo constante de operações dos órgãos de segurança, o combate ao mercado ilegal alia Polícia Civil, Brigada Militar, Polícia Federal e Receita Federal. Nos últimos 10 anos operações deste tipo tiraram do mercado 17 mil pacotes de cigarros contrabandeados em Venâncio. Isso representa mais de 1,7 milhão de cigarros ilegais fora de circulação.
Ao mesmo tempo que saem, outros chegam, e no município este trabalho é constante, segundo o delegado Felipe Staub Cano. Isso porque, a cidade está em território estratégico geograficamente, pelas suas rotas de entrega, fácil acesso às regiões serrana e metropolitana. “Todos os tipos de crimes possuem ligação com outros. Como há demanda, principalmente pela população de baixa renda, existe consumo para este tipo de produto. Em Venâncio, por existir rotas importantes para Porto Alegre, serra e cidades polos da região, há caminhos para este tipo de crime. Ações conjuntas em âmbito regional buscam diminuir a circulação de contrabandistas”. O delegado afirma ainda que fábricas clandestinas não foram fechadas neste período no município.
PERDAS NA PRODUÇÃO
Para o prefeito de Venâncio Aires, Giovane Wickert (PSB), sem o mercado ilegal, a produção para abastecer o consumo interno teria aumento. Atualmente 85% do produto produzido no Brasil é exportado. Outros 15% são destinados para a produção de cigarros legais e consumidos em território nacional. “Se houver redução maior do consumo do produto ilegal no país, poderíamos dobrar a produção para o consumo interno brasileiro. Isso seria maior produção no campo, nas indústrias, aumento de contratações e tributos. Sem o produto ilegal, os ganhos seriam importantes para a nossa economia,” argumenta. De acordo com a cadeia produtiva do tabaco, o produto ilegal representa quase 50% das vendas de cigarros no Brasil.
Confira na próxima edição o segundo capítulo da série: “Há algo errado aqui” – um mapa da contrabando de cigarros